Havia ali, na rua logo abaixo, uma flor que brotava no asfalto.
Eu, teimoso em ver encanto no trivial inesperado, achava isso fantástico. Me postava ali, sentado na calçada, a admirar o espetáculo de uma flor ao sol, ilha em meio ao escuro mar do asfalto. Suas pétalas eram brancas com minúsculos pontinhos escuros.
Apertava os olhos e sorria.
Sentia-se de longe o perfume ímpio do seu coração imenso e bravo. Se houvesse uma cor nesse aroma, seria lilás, pura e intensa de sua impassividade ao amor.
Por tanto apreço à flor, preocupava-me dos carros que iam e vinham.
Ela não tinha essa apreensão, afinal, escolhera brotar ali e ali abrir os braços ao sol. Os carros eram de outro mundo. Na minha vista, ali havia apenas uma flor. Desaparecem carros, casas, pessoas, cidade. É o meio de tudo. É o espetáculo de apenas ser.
Preocupação tola, a minha. Mais que isso, infantil - infantil como eu me sentia ali sentado na calçada assistindo a uma flor banhar-se em sol. É desses sentimentos de rendição que não se percebe chegar. Deixo-me persuadir pela suave e inocente figura de pétalas alvas em meio ao negro do mundo.
Asfalto quente e escuro, emana ondas de calor que me confundem a vista em certas ocasiões. Perco-me, confundo-me, assalto-me da coerência; desnorteio-me sem a vista real da flor branca de pontinhos escuros. O problema é o asfalto. O problema são os carros. O problema são os outros. Quisera eu parar todos os carros, resfriar o asfalto. Convive-se e aprende-se. Mais que isso, sente-se. Flor feita apenas do sentir.
Na separação, de volta à minha casa, contemplo apenas o céu na rua onde moro: nublou, e nada mais pode me trazer uma lembrança tão forte quanto essas nuvens sob o sol que banha o sorriso minha flor do aslfato.
13.9.10
2.4.10
A noite é inteira
América percebeu que precisava trocar a escova de dentes. Notava uma leve aspereza em alguns dentes ao toque da língua. Guardou como uma nota mental passar amanhã no mercado para comprar uma escova. Enquanto encarava o próprio rosto no espelho, maquiado com a espuma do creme dental nos lábios, pensou nos demais afazeres. Organizar os dvd's nas devidas capas, trazer as roupas limpas para o guarda-roupa, levar as sujas para a área de serviço, pesquisar na internet alguma forma alternativa para disfarçar os fios brancos que apareciam no cabelo. Talvez reorganizasse a posição do sofá na sala.
Na noite alta, era seu hábito manter-se ocupada. A noite na janela estava escura, ainda sem estrelas. O silêncio era o mesmo. A única diferença era que Ele não estava mais lá.
Às tantas da madrugada, achou lugar em que sentia-se disposta. Agora lia um tanto, mas não prestava atenção realmente ao texto. Os pensamentos disputavam sua atenção com o livro que tinha em mãos; sempre havia algo para fazer, algo para organizar. Queria sempre ter alguma tarefa a cumprir.
Foi a forma que encontrou para por ordem na própria vida. Não sabia isso de claro, mas era a diretriz que comandava tudo o que fazia. Pensava no mundo, pensava no tempo, pensava na idade, e sobretudo, pensava nas pessoas.
Havia um pouco tempo, talvez alguns meses, que sentia-se distanciar das pessoas, ao passo que queria ao mesmo tempo entendê-las cada vez mais. Tem lá sua lógica. Assista tudo de cima, veja o rato correr o labirinto. Uma aranha na janela, um anjo na piscina. Assista as pessoas irem e virem nas calçadas. Talvez isso tenha acontecido por ter perdido o emprego, todo esse desapego. Justo ela, que lidava com pessoas o tempo inteiro em sua rotina de recepcionista. Talvez tenha sido a solidão sólida que sentiu quando Ele se foi. Parecia ter contagiado-se com o pensar descontrolado que Ele tinha. Mas no caso de América, os pensamentos tinham o único propósito de manter longe o fato de que Ele não estava mais ali. Isso também não sabia de claro.
Largou o livro no colo e deixou a cabeça pender ao recosto do sofá. No tempo em que analisava o acúmulo de insetos no lustre da sala, achava estranho a necessidade de que as pessoas têm em se agarrar a outrem. Dela própria depender tanto dele, justo agora que Ele era apenas ausência.
Sentiu o dedo latejar novamente. Queimou-o enquanto esquentava o café do dia anterior; preferiu mantê-lo sem band-aid, sem pomadas, sem manteiga. Cedo ou tarde tudo voltará ao normal. Isso trouxe-a de volta à realidade. Ainda que tivesse o dedo inoperante, resolveu levantar-se do sofá e puxá-lo para mais próximo da janela. Mesmo depois de ter passado a noite em claro carregando livros e varrendo pisos, queria cansar-se mais. Assim o descanso é honesto.
Posicionou o sofá abaixo da janela e vislumbrou a noite sendo aniquilada pelo dia nascente. A noite que Ele a deu. "América, meu amado continente". Foi o que havia escrito numa das poucas cartas que que fez. Animou-se discretamente com a lembrança, mas não o suficiente para que algum sorriso surgisse. Não em seu rosto; na alma talvez. Por conseguinte, lamentou e pensou: "A noite é inteira". Às vezes sentia uma certa raiva em estar bagunçando mais ainda o apartamento, mitigando a ordem de seu espaço a cada dia que passava com suas efêmeras organizações. Raiva dele por entrar tantas vezes em sua mente sem pedir permissão.
O dia estava alto e não havia mais tempo para pensar ou pensar em algo mais a fazer. Era hora de sair em busca de outro emprego, comprar a escova de dentes nova; mas antes disso precisava alimentar seu animal: um dragão pálido ufava e ansiava por comida em sua pequena caixa na cozinha.
Na noite alta, era seu hábito manter-se ocupada. A noite na janela estava escura, ainda sem estrelas. O silêncio era o mesmo. A única diferença era que Ele não estava mais lá.
Às tantas da madrugada, achou lugar em que sentia-se disposta. Agora lia um tanto, mas não prestava atenção realmente ao texto. Os pensamentos disputavam sua atenção com o livro que tinha em mãos; sempre havia algo para fazer, algo para organizar. Queria sempre ter alguma tarefa a cumprir.
Foi a forma que encontrou para por ordem na própria vida. Não sabia isso de claro, mas era a diretriz que comandava tudo o que fazia. Pensava no mundo, pensava no tempo, pensava na idade, e sobretudo, pensava nas pessoas.
Havia um pouco tempo, talvez alguns meses, que sentia-se distanciar das pessoas, ao passo que queria ao mesmo tempo entendê-las cada vez mais. Tem lá sua lógica. Assista tudo de cima, veja o rato correr o labirinto. Uma aranha na janela, um anjo na piscina. Assista as pessoas irem e virem nas calçadas. Talvez isso tenha acontecido por ter perdido o emprego, todo esse desapego. Justo ela, que lidava com pessoas o tempo inteiro em sua rotina de recepcionista. Talvez tenha sido a solidão sólida que sentiu quando Ele se foi. Parecia ter contagiado-se com o pensar descontrolado que Ele tinha. Mas no caso de América, os pensamentos tinham o único propósito de manter longe o fato de que Ele não estava mais ali. Isso também não sabia de claro.
Largou o livro no colo e deixou a cabeça pender ao recosto do sofá. No tempo em que analisava o acúmulo de insetos no lustre da sala, achava estranho a necessidade de que as pessoas têm em se agarrar a outrem. Dela própria depender tanto dele, justo agora que Ele era apenas ausência.
Sentiu o dedo latejar novamente. Queimou-o enquanto esquentava o café do dia anterior; preferiu mantê-lo sem band-aid, sem pomadas, sem manteiga. Cedo ou tarde tudo voltará ao normal. Isso trouxe-a de volta à realidade. Ainda que tivesse o dedo inoperante, resolveu levantar-se do sofá e puxá-lo para mais próximo da janela. Mesmo depois de ter passado a noite em claro carregando livros e varrendo pisos, queria cansar-se mais. Assim o descanso é honesto.
Posicionou o sofá abaixo da janela e vislumbrou a noite sendo aniquilada pelo dia nascente. A noite que Ele a deu. "América, meu amado continente". Foi o que havia escrito numa das poucas cartas que que fez. Animou-se discretamente com a lembrança, mas não o suficiente para que algum sorriso surgisse. Não em seu rosto; na alma talvez. Por conseguinte, lamentou e pensou: "A noite é inteira". Às vezes sentia uma certa raiva em estar bagunçando mais ainda o apartamento, mitigando a ordem de seu espaço a cada dia que passava com suas efêmeras organizações. Raiva dele por entrar tantas vezes em sua mente sem pedir permissão.
O dia estava alto e não havia mais tempo para pensar ou pensar em algo mais a fazer. Era hora de sair em busca de outro emprego, comprar a escova de dentes nova; mas antes disso precisava alimentar seu animal: um dragão pálido ufava e ansiava por comida em sua pequena caixa na cozinha.
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